O Pensador
Ela está sentada
A Mãe-Pensador
Está cuidadosamente sentada
entre a vida e a morte,
para lá de toda a gente.
Ela está sentada,
a Mãe-Genitor sobre seu andor.
Mas não como a Senhora dos ausentes.
Nem como a virgem dos doentes.
Nem como a Nossa Senhora das Dores.
Ela não tem nada
a Mãe-Pensador.
Não tem morte
nem vida
nem Sul
nem Norte
nem cima
nem baixo
nem cor
nem dó.
A Mãe-Pensador é nós,
na nossa mente.
Ela é a nossa longa consciência.
Ela não tem senão um velho pó
como palavras justas em roda duma oval.
Ela não tem senão a força
e toda a ciência
da sua oval talhada
num pedaço de ideia universal.
Sem contrair nenhum nervo,
sem pronunciar uma palavra
sem alargar o nó do seu dorso
ela é cereal na nossa lavra,
ela é uma luz no nosso acervo.
Ela é nós, sem qualquer esforço.
Mãe-Pensador serena e nua
entre a morte eterna
e a vida imortal
tiradas um pouco a toda a gente
como um tributo à flor habitual
que fica entre o Sol e a Lua
eternamente…
Ela está toda enrodilhada
em volta do seu nó
Dentro do qual desfila em parada
toda a nossa miséria militante
Como num outro gueto, onde vive um povo
sem Galileia nem Jericó
Entre a paz e a guerra
Entre Cassinga e Soveto,
nervoso e exitante,
mas não só.
Ela está sentada num toco de pau-preto,
num taco de pau-terra,
com profundas raízes na nossa mente,
e é como o fluxo sincrético,
que vem pelo tempo fora
repensando o povo ao longo dum milênio, mestiçando de novo
a consciência de agora, irredutivamente.
Ela está sentada no seu gênio hieráctico
Sentada no seu modo diacrônico,
À porta do seu tumulo transparente.
Ela geme imperceptivamente o seu gemido rouco e desarmônico
Que soa em nós por dentro e por fora
num cântico diatônico
Ela não tem sombra,
a Mãe-Pensador
Ela não tem bafo,
nem sangue, nem suor
Ela é a sombra,
ela é o bafo,
ela é o amor…
A Mãe-Pensador não está de pé.
Cotovelos assentando nos joelhos,
olhos cerrados em grãos de café,
está sentada meticulosamente
escutando tudo,
olhando toda gente.
Básica e serena como ela é,
Vendo tudo detalhadamente.
Mãe-Pensador
muda mente ambígua
Tua cabeça pensa adormecida
o ser e não ser da nossa vida
E murmura num gemido ritual
O som de tão perigosa vizinhança,
Dessa misteriosa condição contígua
Da derrota que precede à vitória da esperança
E o som gemido, rouco e atonal
Como a formula básica de um singular perito,
Sonoriza a rigorosa oval
Onde se debate o nó do conflito
que germina uma formosa ideia.
E as equações da Morte e da Vida
Vão do principio ao fim do infinito
Abraçadas entre as trevas e a luz
Tecendo a nossa teia
O teu cérebro antiquissimo registra
essa unidade vagarosa, imemorial
que se cria pela Memória a perder de vista
e nela serpenteia.
A voz murmurada do cântico espontâneo
que exala da terra e se reproduz
pelas chamas arrasadas do Mussende
como prece pagã que repercute
no céu da catedral dum velho crânio,
ressoa ainda uma cantata em ut,
rodopia ainda uma dança em redondo,
que foram missa negra em ditirambo
na belicosa véspera de Kalendende,
na áurora sangrenta de Angolene Akitambo
no raiar da vitória do Kifangondo.
Ela olha e vê,
Do seu toco de pau-tempo
A marcha satural de tanta gente
Corrompendo a esperança, activando os medos,
Gargalhando as suas risadas soturnas
Palavreando os seus discursos loucos.
Os olhos apagados como estrelas diurnas,
ela olha e vê pelos seus longos dedos,
ela olha e vê paulatinamente
toda aquela gente
a morrer aos poucos.
Com seu sorriso de estrela reservada,
A Mãe-Pensador olha e vê
Os nomes que sobraram na Memória da coragem,
Que não morrem aos poucos, nem tampouco
Doutra maneira mais sofisticada.
Ela olha e vê do cimo do seu toco
Seus antigos companheiros de viajem
O principe Ilunga – que recusou a guerra –
E a formosíssima princesa Lweji,
Amarem-se na paz e no calor da terra
de uma outra Chana de Lwameji
onde as begônias se cruzam com os fetos
mestiçando a flora.
Ela olha e vê
pelo tempo fora,
O cortejo de filhos e de netos
Dos filhos dos netos dos bisnetos,
Habitarem cada campo e cada canto
dessa pátria que foi mundo novo.
E a Mãe-Pensador
como quem cisma, sorri então todo o seu espanto
E goza de olhos postos em si mesma
A formidável linhagem do seu povo.
Henrique Abranches (Poeta Angolano)


















